domingo, 22 de abril de 2007

Dor


Solidão


A solidão instalou-se dentro de mim.
Recuso qualquer convite antes de o ouvir,
o meu coração encerrou-se atrás de uma porta de betão.
Nada me anima, nada faz bater mais forte o meu coração aprisionado.
E assim vogo nos dias cismando o que fui e não recuperarei
As lágrimas tornaram-se a minha fuga e o meu consolo
Não sei em que direcção agir, só penso em fugir para dentro de mim
É tão bom este esconderijo inexpugnável.
E assim a vida não me chama e esquece-se que eu existo
Morrendo lenta e conscientemente.
O crepúsculo é a minha mortalha.

sábado, 21 de abril de 2007

Quase

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa ...
Se ao menos eu permanecesse aquém ...


Assombro ou paz ? Em vão ... Tudo esvaído
Num grande mar enganador d´espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor ! - quase vivido ...


Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão ...
Mas na minh´alma tudo se derrama ...
Entanto nada foi só ilusão !


De tudo houve um começo ... e tudo errou ...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim ...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou ...


Momentos de alma que desbaratei ...
Templos aonde nunca pus um altar ...
Rios que perdi sem os levar ao mar ...
Ânsias que foram mas que não fixei ...


Se me vagueio, encontro só indícios ...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d' heroi, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios ...


Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí ...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi ...


Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe d´asa ...
Se ao menos eu permanecesse aquém ...



Mário de Sá-Carneiro
in Poemas Completos

Labirinto ou não foi nada

Labirinto ou não foi nada


Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.


É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!


Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.


É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.


Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.




David Mourão Ferreira
in À Guitarra e à Viola
Obra Poética

Quem escreve


Quem escreve

Quem escreve quer morrer, quer renascer
num ébrio barco de calma confiança.
Quem escreve quer dormir em ombros matinais
e na boca das coisas ser lágrima animal
ou o sorriso da árvore. Quem escreve
quer ser terra sobre terra, solidão
adorada, resplandecente, odor de morte
e o rumor do sol, a sede da serpente,
o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o negro meio-dia sobre os olhos.



António Ramos Rosa
in ACORDES,

Mãos feridas na porta dum silêncio

Mãos feridas na porta dum silêncio

Vida que às costas me levas
porque não dás um corpo às tuas trevas?


Porque não dás um som àquela voz
que quer rasgar o teu silêncio em nós?


Porque não dás à pálpebra que pede
aquele olhar que em ti se perde?


Porque não dás vestidos à nudez
que só tu vês?



Natália Correia
in Poesia Completa

Que música escutas tão atentamente

Que música escutas tão atentamente


Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


Eugénio de Andrade
(Coração do dia)

Há Dias

Há Dias

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.


Eugénio de Andrade
in Os lugares de Lume

Cada dia é mais evidente que partimos

Cada dia é mais evidente que partimos


Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Antologia

Obrigada Ana e Tininha


Há quem ponha flores no meu caminho, para que eu esqueça as dores. Mil obrigadas....

sábado, 7 de abril de 2007

Morta



Sinto-me morta
Logo estou morta.
Respirar é um mero defeito,
que com o tempo será desfeito.
Morta para esta merda de vida
Morta para quem me tirou o sol
Morta para quem me enforcou a esperança
Morta para tudo.
Deixem-me enrolada como um bicho de conta,
Embrulhada no sofrimento do engano...
De quem me extorquiu tudo até ao último alento
E que faz disso alarde e vanglória.
E eu? Calada, agrilhoada, amortalhada em vida,
Enfim, morta.
Como era bom deitar-me
e não voltar a acordar...
Mas nada é tão simples comigo.