segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Carta de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro

Carta a Mário de Sá-Carneiro
Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de
onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma
ironia de lata.
(...)
...ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.

(...)

De que cor será sentir?

Milhares de abraços do seu, sempre muito seu,

FERNANDO PESSOA
(texto com supressões)

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