"- A mentira (...) é uma opção. Consiste numa contextualização arbitrária e consciente, com um objectivo. Enquanto a verdade é abertura e cria vulnerabilidade, a mentira é controlo, equacionamento e protecção, bem como risco calculado.
Falar verdade é fácil. Não exige mestria nem sabedoria. É básico. Mentir, por seu lado, é um exercício que apela ao balanço, cálculo, avaliação, arte, desenvoltura, representação, mímica, memória, raciocínio, sentido de plausibilidade. É um jogo exigente que obriga ao nosso melhor, pois, se não for ganho, o resultado é a desgraça ou o descrédito do indivíduo.
Ter consciência das implicações da mentira leva-nos a controlar o comportamento e a direccionar os objectivos. A deliberada denúncia de uma mentira é, por parte do jogador exímio, uma atitude falsa, que resulta numa vitória e num caminho para uma jogada maior. A consciência da existência de uma relativa capacidade de observação do interlocutor leva o mentiroso a um refinamento do seu comportamento, surtindo, quando capaz, um efeito mais profundo. Qui s'excuse s' accuse só funciona entre níveis de jogadores diferentes, entre percepções díspares. eu sei que tu sabes que eu sei que tu sabes ... leva a um esgrimir inconsequente e interminável, que só poderá encontrar resolução se, ao longo do percurso, houver um deslize ou uma incauta denúncia. de outra forma, as regras que definem o mentiroso e as regras a que o mentiroso recorre só servirão para tornar a acção nula, porquanto ambos os interlocutores dominam as técnicas.
O elemento que permite desequilibrar o combate de mentiras é a introdução de verdades, ou meias verdades, devidamente doseadas e calculadas.O jogo passa a ter, então, uma complexidade tal que nem mesmo um interlocutor esclarecido sobre as técnicas da mentira consegue detectar com facilidade o grau de mentira.
Uma mentira pode, então, tornar-se numa verdade."
Sérgio Lorré, Veneno com Veneno
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